domingo, março 02, 2008

Lunático - Segundo a música dos Gotan Project

A noite estava quente em Nova Iorque. As baforadas de ar tórrido subiam dos respiradouros do metropolitano e intrometiam-se nas bainhas das minhas calças.
Os meus passos são incertos no meio desta multidão efervescente sem rumo.
Dou comigo a caminhar em direcção de Times Square.
Uma miríade de luzes e cores verte-se sobre mim: brilhos de um milhão de estrelas demasiado próximas. Julgo estar no centro de uma supernova em explosão.
Fico cega por uns instantes. Os meus ouvidos recebem os sinais mais contraditórios. O constante linguarejo que resulta da fusão de todos os idiomas do Mundo, o resmungar mecânico dos automóveis e passos... Muitos passo à minha volta, a envolver-me.
Também os cheiros me abordam. Ali vendem-se nozes doces e pouco mais à frente comida israelita. O tom sufocante dos escapes, no entanto, sobrepõe-se a todos os outros.
Lentamente recupero a visão, começo a distinguir formas e contrastes no meio do clarão.
E vejo-te. Começas por ser uma sombra contra um néon. Não mais que uma mancha negra. Mas depois aproximas-te e ganhas definição.
Conheço-te, sei quem tu és e já te sinto de antecipação.
Aproximo-me também. Junto-me ao muro de gente que tenta atravessar a rua e dou por mim no centro da praça. Tu também lá estás.
Tento falar, mas tu franzes o sobrolho (também não saberia o que dizer...).
Os primeiros acordes mal se distinguiam, mas depois foram-se afirmando. Dois ou três músicos começaram a tocar um tango a pouca distância dali, em troca de alguns "quarters".
Sinto a tua mão na minha cintura e a tua respiração morna no meu pescoço.
Muito suavemente conduzes-me nos primeiros passos daquela dança.
As minhas pernas tremiam-me. Não sabia onde pôr os pés, mas o teu enlace deu-me confiança e compasso a compasso o nosso tango desenhou-se.
Assim insólitos - dois apaixonados um tanto desconhecidos no meio de uma praça cheia de gente. Não fazia sentido a não ser para nós.
Bem lá longe a lua e as estrelas observavam obscurecidas pelo vidro fosco das luzes terrenas e ditavam as suas sentenças.
O teu peito tão perto do meu palpitava em sintonia com o acordeão e a tua respiração afinou com a minha.
A música cresceu num clímax discreto e perdi a consciência do que me rodeava.
Até que terminou - tal como era - gritante, pungente, indomável e traída como o tango que se ouvira.
E tu deixaste-me ir. Os teus dedos desenlaçaram-se dos meus, o teu braço abandonou a minha cintura com a suavidade de uma onda de maré vaza.
Viraste costas. Nunca te perdoarei. E voltaste a fazer parte da multidão. Primeiro uma sombra e depois nem isso.
Fiquei sozinha naquela explosão apoteótica de luz com toda a noite do Universo no meu peito.


Não sei porquê isto fez sentido para mim um dia. Hoje lembrei-me da música e decidi postar.
Porquê Nova Iorque? Bem, não achei que Buenos Aires fosse apropriado :P

Sem comentários: